Muitas vezes é difícil para um menino ou menina saber sua identidade de gênero. E a família sempre tem um papel decisivo para que essa dificuldade se instale.
Eu, Mamãe e os Meninos é uma história de vida curiosa: filho caçula de uma mãe que deseja ter uma filha, desde cedo Guillaume ligou-se a esse desejo e tudo que ele fazia era para agradá-la. Embora possua gestos afeminados: a fala, o andar, gesticula como sua mãe ao passo que repudia os esportes viris que tanto atraem seu pai e irmãos. O filme não deixa claro se Guillaume considerava-se menino ou menina, evidenciando assim o seu conflito. Também não é explicito o porque desse desejo da mãe que ele fosse menina.
Guillaume escreveu um monólogo para o teatro e depois resolveu dirigir seu primeiro longa, onde essas lembranças são encenadas com genialidade e muita fineza. “Eu, Mamãe e os Meninos” (Les Garçon et Guillaume à Table) é um filme autobiográfico (o que deixa mais interessante) dirigido e interpretado por Guillaume Gallienne, com os detalhes de um caso confuso e difícil sobre a definição da identidade de gênero.
O que é identidade de gênero?
Esse conceito significa sobre o relacionamento da pessoa com o seu próprio corpo. Por exemplo, existem pessoas que nascem biologicamente homens, mas não se identificam com esse gênero desde a infância, o que pode gerar confusões internas.
Na hora de chamar os filhos para o almoço, a mãe diz: – “Meninos e Guillaume, almoçar!” (traz a ambiguidade) com isso nega a ele a masculinidade colocando-o como diferente de seus irmãos homens, portanto deveria ser uma menina.
Ela, mãe de três filhos, desejava ter uma filha. Fica nítido tanto pelo título do filme quanto pelo diálogo inicial entre mãe e filho. Guillaume conta para sua mãe sobre seu amor por Ana, quando ela responde: - “como vai ele?” Não precisamos dizer o quanto esses lapsos representa o desejo inconsciente dessa mãe. Guillaume fica confuso e deixa para lá, em seguida começa elogiar sua mãe do quanto ela fica linda falando espanhol.
O filme gira em torno de uma grande dificuldade frente ao desejo dessa mãe.
A intenção aqui não é realizar um diagnóstico de Guillaume, mas nos leva a pensar na estrutura neurótica, já que ele demanda o tempo todo ao Outro varias questões como: “Quem sou eu?”, “Como tenho que ser?”, “O que quer de mim?”.
Um exemplo, na cena da viajem a Espanha, uma moça se recusou a dançar Servilhana (dança típica) seria para dançar com homens e não entre duas mulheres. Guillaume pergunta a ela se ele parece com uma mulher ao que ela responde positivamente. Isso fez ele vibrar por achar que sua mãe ficaria feliz em saber.
A mãe é uma pessoa com aparência segura, agressiva e arrogante, por mais que tenha amor pelo filho mantém um vínculo de domínio frequentemente sádico. A necessidade de ser reconhecida como perfeita, sem limites, ela reage de forma agressiva a algum tipo de crítica que possa desmontar sua armadura onipotente.
Com certa fixação Guillaume imitava a voz, o andar e a forma como sua mãe mexe o cabelo. A idealizava quando mencionava que ela não tinha nenhum defeito dizendo: “Minha mãe é maravilhosa”, “Ela é sempre linda!”. Essa fixação ao objeto materno corresponderá ao entrave que ele vai se deparar no momento de se relacionar com as mulheres.
Ele não entendia porque a mãe estava infeliz, sendo que ele é uma menina como ela, sobretudo, como ela desejava. Continuava confuso, então, resolveu que não precisava se limitar as mulheres de sua família e expandiu seu olhar para cada detalhe de diversas mulheres ao seu redor.
Passou a admirá-las – uma a uma – quando se dá conta que (A Mulher) não existe, Guillaume começa a deixar essa posição de objeto de sua mãe, e passa a gostar das mulheres. Nesse sentido, para tornar-se homem é necessário o menino distanciar-se de sua mãe em maior ou menor grau para se aproximar de uma mulher.
Guillaume dizia que a mãe comprava roupa de menino para ele para não irritar o pai porque o mesmo não queria que ele fosse uma menina. Na verdade esse pai não queria o filho alienado ao desejo da mãe.
Durante o teste de Rocharch ele vê na prancha dois ratos comendo um ao outro, a terapeuta fala que a maioria vê borboleta. Guillaume pede para trocar e colocar borboleta. Apresentou dificuldade de discutir algo através de seu próprio olhar, receio de desagradar. Evita demonstrar sua voracidade e agressividade frente aos conflitos internos sobre sua sexualidade. O sentimento de insatisfação traz a necessidade de agradar para se reassegurar e se confirmar através do desejo do outro.
O filme segue com inúmeras tentativas frustradas do protagonista de responder desse lugar em que é colocado.
Sua tia sugere que ele deveria experimentar relacionar-se com homens a fim de responder sua questão sobre ser homem ou mulher, já que ele – adulto – nunca tinha se relacionado com ninguém. O sujeito se identifica e opera através da própria construção daquilo que entende frente aos conflitos dos desejos inconsciente dos pais, e do papel em que é imposto de forma implícita pela família.
Na cena em que a mãe reage de forma distante tentando ignorar o choro do filho, em seguida tenta conversar. Guillaume desabafa e conta que ama Jeremy mas ele gosta de Liza, então, pergunta para sua mãe o que ele deve fazer. Ela responde de forma seca que muitos deles são felizes: - “meninos que gostam de meninos... homossexuais”. Fica nítida tamanha alienação ao desejo materno, quando em sua pergunta sobre o que o Outro materno quer dele, depara-se com a irritação de sua mãe.
Claramente podemos observar durante o longa que a identidade sexual e a identidade de gênero ocorrem através das representações psíquicas que são transmitidas. Acontece primeiramente pelo discurso dos pais e pelo inconsciente biparental, mais para frente, pelo discurso sociocultural do casal parental.
E assim, pela primeira vez a mãe o nomeia como menino. Por uma questão lógica, com a resposta da mãe ele entendeu que não era uma garota. Guillaume seguiu com a ideia de que para ser homossexual era preciso inicialmente ser homem, e por ser um rapaz era difícil ser viril e enfrentar o medo que tinha de cavalos e servir ao exército. Dessa forma, o desejo da mãe de ter uma filha, por fim, estimula que seu filho caçula fosse visto como homossexual também por todos – colegas da escola, terapeutas e irmãos.
Guillaume tinha necessidade de ser perfeito e aparentava nunca se sentir autossuficiente. O analista fala que ele não gosta de si mesmo. O protagonista se lembra de sua mãe que o chama de narcisista por só pensar nele e que ele não tem autoconfiança. Isso fez com que ele olhasse para si mesmo e não mais para a mãe maravilhosa ou para o que os outros pensavam dele.
O acesso as representações simbólicas do masculino e ao modo como o sujeito vivenciará sua masculinidade, será importante a relação com um pai real, ou substituto. Guillaume ao fazer aulas de equitação para dominar seu medo de cavalo (simbolizava: medo de aceitar sua virilidade e desagradar o desejo da mãe de ele não ser uma menina), um instrutor calmo e gentil o ajuda perder esse medo e confiar no animal.
Na cena que Guillaume telefona a uma amiga para ir a casa dela. A mesma informa que receberá apenas suas amigas para um jantar. Esta resposta já o coloca no grupo dos homens. Ele decide ir ao jantar e naquela noite, ele avistou a mulher mais bonita do mundo, adorável, atraente e bela. Surpreendentemente, na mesma noite em que sua amiga inverte a frase de sua mãe e chama: - “Meninas e Guillaume, jantar!”. Ele adora a ideia e jamais pensou ouvir isso antes.
Guillaume através das artes cênicas reelabora seus traumas, recria seus objetos destruídos e repensa sobre suas feridas narcísicas. Ao contar para sua mãe que vai escrever uma peça sobre um garoto que aprendeu a aceitar sua heterossexualidade em uma família que decidiu que ele seria homossexual. Ela o questiona sobre esse garoto da peça enfatizando se ele é 100% heterossexual. Foi possível escutar o desejo de Guillaume, que foi para além do desejo de sua mãe, nos ensinou que é possível não se render ao imperativo desejo do Outro.
Após um empenho pessoal Guillaume pode encontrar sua heterossexualidade, consegue diferenciar seus desejos dos desejos da mãe, se identifica com o masculino quando se apaixona por uma mulher.
Guillaume entende que amar uma mulher não é deixar de amar sua mãe, mas graças a mãe ele adora as mulheres, aprendeu a observá-las e ouvi-las. O processo de construção da subjetividade ocorre por diversas identificações, assim, os objetos vão sendo trocados. O fracasso ou sucesso nessas trocas será determinante na formação do equilíbrio ou do sintoma e, das possíveis criatividades de cada pessoa.
Guillaume reprimiu a heterossexualidade. Se sentia diferenciado por toda sua família, isso refletiu nas suas relações com o mundo externo. O pouco que se afastou dos desejos de sua mãe, começou a perceber seus próprios desejos e criar novas identificações. Conseguiu finalmente fazer as pazes com a sua sexualidade.
O fato de existir uma escolha subjetiva sexual tira o sujeito de seu lugar de vítima do desejo de seus pais. Essa é a ética da psicanálise, a qual lida com o sujeito responsável. Por fim, podemos escolher por algo diferente da expectativa do Outro. Em psicanálise, pensamos em sujeitos responsáveis por sua sexualidade, seja ela homo ou heterossexual, que podem escolher por responder tal e qual desejam dele, ou não.
Psicóloga Renata Gonçalves – CRP 06/122453
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