Precisamos Falar Sobre o Kevin: Análise Psicológica
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Precisamos Falar Sobre o Kevin: Análise Psicológica

Há casos que ficam marcados na história por terem em seus contextos, jovens que acabam por assassinar seus colegas de escola e/ou pais ou parentes próximos. A família desses jovens sofrem pressões do meio social que exigem uma resposta, buscando procurar indícios que demonstrem em que momento da construção do sujeito deu-se tal “falha”.



Quando tais atos acontecem, surgem os questionamentos: como foi à vida deste garoto? Os pais erraram em algo? Seria algo genético ou adquirido? Conflitos na educação familiar? Ele demonstrava algo que daria indícios para tamanha brutalidade?

Perguntas como estas sempre passam pela mente das pessoas.


O ambiente familiar é aparentemente normal, uma família de classe média, com nível de conhecimento mediano. Se fosse um problema no pulmão, nos rins, nos olhos - esses pais visitariam os mais diversos hospitais buscando seu devido tratamento. A comunicação é básica e rasa, não há palavras, os pais escolheram não alcançar a real problemática do assunto. Este é um caso de saúde mental e, a família não quer aceitar que o filho saudável, engenhoso e bonito, seja um "doente" mental, por isso, não buscam ajuda, nem falam sobre isso.


Os pais de Kevin estão presentes, mas não conseguem suprir as urgências emocionais do filho. Ele é fruto de um desamparo oculto e desesperador. Mesmo que exista a insistência na propensão genética há crueldade e violência, o filme mostra claramente que o ambiente foi incapaz de alimentá-lo de vivências boas.


capa do filme e do livro precisamos falar sobre o kevin na capa do filme está os pais de kevin e na capa do livro esta o kevin com uma mascara de gato

O que fez Kevin tornar-se um assassino em massa? Falha no ambiente? Doença congênita? A psicologia ou a psicanálise poderia auxiliar?


Precisamos falar sobre o Kevin é uma adaptação cinematográfica de um romance publicado em 2003 escrito pela americana Lionel Shriver que venceu o prêmio britânico Orange Prize 2005. O filme foi dirigido por Lynne Ramsay conhecida pela competência de abordar situações limites bastante angustiantes.


O filme não é relatado de forma cronológica, utiliza-se de flashbacks para remontar a história da família Khatchadourian, composta por Eva (mãe), Franklin (pai), Kevin (16 anos), filho e personagem principal e Celia (6 anos), filha e irmã. É um filme que o espectador desde o começo tem evidencias do desastre final.


Eva é uma mulher bem-sucedida no ramo do turismo, independente, casada, que se vê às voltas de uma gestação desejada somente pelo marido. É possível perceber que não há ligação emocional com o bebê de poucos meses de gestação, demonstra aborrecimento e confusa em relação a sua própria barriga, já outras mães estão envolvidas e curtem o momento tão único.

Nitidamente apática Eva na cena do parto nos traz um momento muito sofrido e complicado, a reação dela com o bebê é de total desprezo e afastamento.


Em seus primeiros meses de vida Kevin demonstra choro intenso, Eva não tem capacidade de acolhe-lo. Demonstra dificuldade em exercer a função materna, percebe-se a sua incapacidade de niná-lo até fazê-lo parar de chorar. O pai, quando segura seu filho, o abraça com muito carinho e ele para de chorar.

Tem uma cena um tanto chocante - Eva vai a rua e para o carrinho de bebê ao lado de uma britadeira, onde o barulho estrondoso e insuportável é um consolo que a impossibilita de ouvir o choro inconsolável do seu bebê.


Ao longo da infância de Kevin; Eva não consegue se comunicar de forma alguma com seu filho, nem nas mais simples brincadeiras. Há uma cena perturbadora em que a mãe segura o bebê longe de seu corpo chacoalhando-o, e com muito custo se segura para não ceder a raiva de não saber o que fazer.

Kevin ao ficar doente passa a ter os cuidados maternos, onde é acariciado e confortado por Eva, que em seguida lê uma história de arco e flecha, uma cena rara e única que trouxe a relação mãe e filho.

O pai alheio a situação não percebe o estado de sua mulher e de seu filho, ou prefere ficar alheio. Eva não tem capacidade de acolher as angústias de Kevin.



Em seu ato final, Kevin já adolescente, nas vésperas de seu aniversário espera a mãe sair de casa, e de posse do arco e flecha (presente de seu pai) mata seu pai e irmã; em seguida dirige-se a escola, e ao chegar na instituição escolar comete o massacre. A única sobrevivente será a mãe. E então, através do ato (massacre) Kevin tem finalmente o que sempre reivindicou de sua mãe, a atenção.

A questão central do filme é que a protagonista não conseguiu elaborar a quantidade de conflitos que surgiam. Durante toda a narrativa do filme Eva está profundamente perdida em suas lembranças a procura de algo que explique sua vivência como mãe.


O psicólogo/analista poderia auxiliar Kevin?

Será que Kevin poderia ser tratado de sua mente doentia a ponto de barrar o desastre? Ele falaria em uma sessão de análise, colocando para fora toda sua perturbação?

Desde a infância, Kevin não aceitava as regras simples e básicas, sua personalidade não foi questionada, seu desregramento é um berro de socorro, não ouvido pelos pais.


Vemos claramente, que a criança não é produto de um choque como seria em situação de violência familiar, acidentes graves, abuso sexual, testemunha de um assassinato. Kevin demora para falar e conter os esfíncteres. Ele busca a atenção de Eva com um ar desafiador como se quisesse reivindicar o olhar e o desejo materno. A mãe é sua audiência o tempo todo.


A instabilidade do sentimento de Eva é extremamente forte, sem conseguir conter seu ódio pelo filho ela explode e age. Na cena quando Kevin acaricia uma cicatriz em seu braço feita pela mãe ao arremessá-lo com raiva contra uma parede. Kevin sabia que Eva o odiava quando diz que neste momento ela foi sincera no vínculo mãe e filho.



Kevin é muito inteligente e incapaz de se expressar, aliás, de forma alguma foi feito algo para impedir que Kevin desencadeasse um desvio. O que mais chama a atenção no filme é a ausência dos pais como guias e educadores, e a total falta de comunicação. Os pais se mostram imprudentes diante dos sinais que Kevin deu. Fingem não ver.


O dever real daquele que vai fazer a função materna e/ou paterna é proporcionar perspectivas para seus filhos/as, não esconder o mundo como ele é, clarear a direção por mais sombrio que possa ser a caminhada. É entrar no pensamento mágico da criança, compreender o que se passa nessa mágica, o que ela sente, pensa, se está triste, se algo a angustia.


As necessidades dos filhos vai além da fisiológica, dar presentes, boas escolas, viagens, videogames, é também, dialogar muito com eles, dar sua presença, seu tempo, seu amor de modo participativo.


Em um processo psicanalítico Kevin talvez pudesse trazer em forma de palavras todo esse vazio afetivo de sua mãe. Colocar toda a raiva e desamparo de que foi vitima desde o inicio de sua vida, e assim, optar por outra forma de defesa para suas aflições imensuráveis que não essa de fazer o seu meio social o palanque da insatisfação - o que garantia o olhar de Eva, a principal testemunha de sua cruel apresentação.


O filme é afônico e suplica por socorro e proteção. Partimos de “Precisamos falar sobre o Kevin”, mudamos para “Precisamos falar com o Kevin”, porque Kevin também precisa se comunicar, manifestar sua raiva, seus sentimentos sombrios. E acima de tudo, “Precisamos falar com a Eva”!


Psicóloga Renata Gonçalves – CRP 06/122453

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